sexta-feira, janeiro 21, 2011

Pé de pobre não tem número...

Ninguém se esquecia das palavras sábias de Ernesto, ditas ao receber mais um saco de generosidade, com pares de sapatos e peças de vestuário: "Pé de pobre não tem número."
Sempre fora o que a avó Casemira lhe ensinara. E a velha senhora ainda acrescentava: " E pobre não troca de roupa, a roupa é que troca de pobre. Vai primeiro para o irmão pobre, depois para o primo pobre, depois para o neto pobre, e assim por diante, até a pobre da roupa já não perceber se nasceu camisola ou cachecol."
Apesar da tenra idade, o gaiato era doutorado na matéria: nascera sem nada e crescera ainda sem menos. Por isso, não temia assaltos, incêndios nem tremores de terra. A vida para ele pouco valia. Com apenas nove anos de idade, já vira desaparecer os bens mais preciosos: a avó, a madrinha e os irmãos que se foram espalhando pelo mundo da desgraça, herdando os passos errantes dos pais.
Ernesto apreciava a liberdade do desapego e nada lhe faltava na capital do país "Vale-tudo-menos-tirar-olhos". Estranhamente, e da noite para o dia, a maioria dos habitantes começara a acreditar nas convicções da mais jovem curandeira daquele lugar: " Quem ajuda recebe troco e, às vezes, a dobrar. Até já vi alguns jackpots."
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Embora o nome do país fosse um aviso, a capital parecia uma terra pacata, mas à noite, nas ruas desertas, o garoto já assistira a verdadeiros filmes de terror, de suspense e mesmo pornográficos, sem nunca pagar bilhete.
"Boa noite, está na hora de ir para o Baú" era assim que Ernesto Naftalina, sua alcunha por gostar tanto de roupa, se referia ao rés-do-chão abandonado, onde dormia num velho colchão, rodeado de mais peças de vestuário do que as existentes na boutique da dona Estrelinha. ....................................................................................................................................................................
Sozinho e confortável no seu Baú, Naftalina passava os serões a cortar fotografias de pessoas com nomes sonantes e a desenhar-lhes por cima fatos, vestidos e chapéus que nunca lhe passaram pela cabeça. nesses momentos sentia-se milionário. Para ele, pobreza era não ter imaginação: não sendo para comer, beber, vestir ou transportar, as ideias tornaram-se, na vida de Ernesto, a tampa da panela de muitos apuros.
"Quando for grande, vou vestir senhores Presidentes, Ministros e Primeiras Damas. Como pode um país sentir-se feliz se os políticos só usam fatos cinzento ratazana, azul noite sem lua ou beje de gente morta?" - comentava Naftalina com o senhor Arlindo, dono do café do largo, enquanto partilhavam as notícias do telejornal, à hora do almoço. O proprietário sorridente pensava: " Sonhar é bom e não custa dinheiro."
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Isabel Zambujal, in "Do Conserto do Mundo" ( Contos)

Nota: este é um extracto de um conto retirado do livro referido, livro esse elaborado em parceria por vários autores, desde os mais consagrados aos iniciados, no âmbito do Ano Europeu do Combate à Pobreza e à Exclusão Social.
Cada conto reflecte um olhar sobre a temática em questão, de acordo com a sensibilidade do seu autor.
Patti, minha simpática visitante, de "Ares da Minha Graça" é uma das contistas.

POBREZA É FICAR INDIFERENTE!

É uma edição da Imprensa Nacional Casa da Moeda.

16 comentários:

  1. Fiquei encantada! Vou cortar e colar num dos meus ficheiros para reler quando me aprouver. Excelente iniciativa.

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  2. Não era preciso haver,ou ser decretado,um ano de combate,é preciso que todos os dias sejam de combate às desigualdades,às injustiças.
    Assim,cheira a hipócrisia.
    A caridade nuncxa foi solução.
    Um abraço,
    mário

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  3. Fiquei deliciado, Rosa, com tanta verdade, nua e crua (de cruel mesmo)!
    Duas grandes verdades: "Pé de pobre não tem número" e "Pobreza é ficar indiferente" !
    ... e dá para reconhecer tanta verdade, pela experiência passada quando também este "pobre" (eu) vai passando para outros (mais pobres) as suas próprias roupas e sapatos !
    Aquele primeiro parágrafo já diz tudo !
    .

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  4. Gostei do extracto.
    Tenho o livro, mas apenas li um dos contos que não é este.
    um beijinho
    Gábi

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  5. É um excerto excelente, enquadrado numa iniciativa maior e que encerra uma mensagem tão válida quanto esperançosa. Oxalá a 'meritocracia' funcione e Naftalina possa ver o seu talento reconhecido. Num país 'à séria' talvez fosse isso mesmo que acontecesse.
    Excerto bem escolhido e causa bem lembrada!
    Abraço
    e óptimo fim-de-semana.

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  6. Não conhecia mas agora quero conhecer. Obrigado pela dica.

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  7. Gostei imenso do extrato, há dias uma amiga falou-me no livro , vou querer ler.
    Beijinhos

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  8. Gostei dos textos e sobre o combate à pobreza, há muito que dizer.
    Primeiro, tenho ouvido este ano, perfeitos disparates de "pobres" mais pobres do que os pobres.
    Combater a pobreza, não é os que mais têm, dar os seus restos, mas ajudar na aprovação de leis que diminuam o fosso, cada vez maior, das desigualdades sociais e o mais importante será combater a corrupção que, à medida que vai subindo, vai provocando o aumento do número de pobres.
    Não é por acaso que nos países subdesenvolvidos, a Corrupção esteja a níveis inimagináveis e os pobres serem os mais pobres... dos pobres.

    Bjos

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  9. Também estou a ler o livro! E o conto da Patti é excelente:))

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  10. O conto da Patti mistura duas vertentes que nos são muito caras, Justine!
    Ontem tive uma experiência que talvez passe para aqui...
    Vamos a ver se consigo alinhavar algo de jeito!

    Abraço

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  11. Claro que os Anos e os Dias disto, daquilo e daqueloutro não resolvem nada, Mário, tens toda a razão assim como a Isa GT...
    Mas escolhi um extracto deste conto não só pela temática mas por três aspectos que achei interessantes:

    1. o nome do país que é o nosso...
    2. o desapego de Ernesto...
    3. o vestuário dos políticos e o seu reflexo na felicidade do povo...( uma excelente metáfora)

    O conto termina com a seguinte frase:
    " Pela primeira vez, Ernesto Naftalina sentiu os sapatos a apertarem-lhe os calos."

    Por aqui podem imaginar o percurso profissional do "nosso" herói...:-)

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  12. Pois é, Rui!
    Todos já fizemos o mesmo apesar de não concordarmos com a caridadezinha!

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  13. Muito bonito o conto.
    Bom fim de semana!

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  14. Fiquei encantada!
    Muito obrigada pela partilha.

    Nem sabia da existência desse livro, elaborado em parceria por vários autores, no âmbito do Ano Europeu do Combate à Pobreza e à Exclusão Social.

    Essa é a grande verdade:
    POBREZA É FICAR INDIFERENTE!

    Bom Domingo. Beijos.

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  15. Lindo texto sobre uma realidade degradante! Apoiar a caridade é fácil e tranquiliza consciências. Infelizmente tb é necessária porque dar condições dignas de vida a todos não deve ser para esta Humanidade...
    Vou tentar encontrar o livro.
    Obrigada.

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  16. Muito interessante, Rosa! Vou tentar adquirir o livro. Obrigada pela divulgação. Um beijo e até breve.

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