sexta-feira, janeiro 14, 2011

Estilhaços



Eu fechava a porta para que, depois, o simples abrir dos trincos tivesse o brilho de um milagre. Para que ele, mais uma vez, casasse comigo. E o mundo se abrisse, casa, cama e sonho.
Durante anos, porém, os passos do meu marido ecoaram como a mais sombria ameaça. Eu queria fechar a porta, mas era por pânico. Meu homem chegava do bar, mais sequioso do que quando fora. Cumpria o fel do seu querer me vergastava com socos e chutos. No final, quem chorava era ele para que eu sentisse pena das suas mágoas. Eu era culpada por suas culpas. Com o tempo, já não me custavam as dores. Somos feitos assim de espaçadas costelas, entremeadas de vãos e reentrâncias para que o coração seja exposto e ferível.
Venâncio estava na violência como quem não sai do seu idioma. Eu estava no pranto como quem sustenta a própria raiz. Chorando sem direito a soluço; rindo sem acesso a gargalhada. O cão se habitua a comer sobras. Como eu me habituei a restos de vida.


Extracto de um dos contos de Mia Couto in " O Fio das Missangas"


Dados provisórios fornecidos em Novembro de 2010 pelo Observatório de Mulheres Assassinadas por violência doméstica registaram 39 vítimas mortais e ainda 11 vítimas associadas, perfazendo um total de 50 pessoas.
As tentativas de homicídio atingiram 39 mulheres.

Nota: A imagem é da net.

22 comentários:

  1. Quanta violência doméstica poderia ser evitada, se as queixas apresentadas pelas mulheres não esbarrassem num muro de indiferença...

    ResponderEliminar
  2. Tem toda a razão o Carlos Barbosa de Oliveira. Elas apresentam queixa deles e o que lhes acontece? Nada! São mandados para casa, para a mesma casa onde vivem com elas. Horrível! Não gosto deste tema! Faz-nos sentir impotentes. Mas é preciso divulgar, divulgar, divulgar.

    ResponderEliminar
  3. Triste verdade a violância contra a mulher. Lamentável. Beijos

    ResponderEliminar
  4. É um triste sinal de quanta besta humana ainda por aí anda.
    É um triste sinal da falta de cultura de um povo.
    Um abraço,
    mário

    ResponderEliminar
  5. Esta estatística irá aumentar, infelizmente, se as mulheres, devido à crise, voltarem a ser dependentes dos "seus" homens.

    Esperemos que a dependência não as "acomode" a esta mortal violência. Eu nunca me conformaria.

    ResponderEliminar
  6. O problema é que nem só :
    "as queixas apresentadas pelas mulheres não esbarrassem num muro de indiferença..."
    Como também :
    " a dependência não as "acomode" a esta mortal violência."

    Dois grandes males da nossa sociedade, que dificilmente se resolverão num curto prazo e entretanto tudo se vai mantendo na mesma situação.
    .

    ResponderEliminar
  7. Uma realidade em qualquer país a que nenhuma classe social está isenta! As estatísticas são ainda aterrorizantes. A diferença está nas leis vigentes em cada país e na forma como são aplicadas.

    ResponderEliminar
  8. Uma temática que não pode tolerar indiferenças...
    Bem ilustrativo este trecho que seleccionou.
    Sabemos que a violência doméstica não escolhe culturas nem estratos sociais. Ela é transversal e universal, infelizmente.

    ResponderEliminar
  9. É uma canalhada! O que não se pode resolver com amor não deve ser feito selvagemmente.
    Aqui tomaram-se muitas medidas mas, mesmo assim, os feito desta índole continua a acontecer. Pode que o medo, às consequências, lamentavelmente, seja a causa principal. Nem o uso de um telefone que não deixa marcas, induz à mulher a decidir-se... continua a sentir-se desprotegida... grita esse medo interior, que assusta.

    Abraços de amizade

    ResponderEliminar
  10. O uso da força perante aqueles que fisicamente são mais fracos, só demonstra cobardia (para além de má índole). Estes cobardes fogem sempre ao confronto físico com aqueles que sabem não conseguir vencer. Pena, realmente, a nossa justiça pecar por omissão de ajuda e/ou arrastamento de casos devidamente sinalizados, até chegarem ao limite.

    ResponderEliminar
  11. A "cena" é de fácil solução...
    Ela, a mulher, prepara um fio eléctrico, colocando numa ponta uma ficha e deixando a outra extremidade descarnada, com os dois fios afastados. Quando o marmejo está a chegar, ela, a mulher, introduz a ficha na tomada, pega nos dois fios descaranados (pela parte revestida) e espreita no óculo da porta. Se topar que o marmejo vem ca narssa, encosta os fios descarnados ao metal da fechadura da porta. Mal o marmejo introduz a chave na fechadura, leva um "esticão" que até os "tin-tins" se lhe colam ao cu e o mais natural, é passar o resto da noite no tapete. Assim a mocinha, ela, a mulher, passa a noite descansada, sem apanhar, sem gramar o bafo a binháça e até sem ter de gramar com o gajo a "serrar presunto" em cima dela e ainda... na manhã seguinte, levanta-se coloca o ar mais angelical do mundo e vai ajudar o gajo a levantar-se do tapete, perguntando ingénuamente: então querido... o que foi que te aconteceu... sentiste-te mal disposto? Vai lá tomar um bom duche que entretanto a querida prepara-te um óptimo cafézinho.
    Se a rapariga, a mocinha, ela, a mulher, repetir este "tratamento" mais 2 vezes, à terceira o gajo convence-se que quando bebe, a fechadura dá choque. E nunca vai imaginar que a gaja tem esperteza para fazer uma marosca daquelas... a gaja afinal, nem sabe pregar um prego...
    Bahhh!!!
    ( Já sei, já sei... muitas das nossas leitoras estarão a cogitar neste momento... hummmmm este bartolomeu já deve ter ficado agarrado à fechadura um porradão de vezes... Enganam-se minhas amigas! Quando chego a casa com a narssa e estou a pensar arrear na minha mulher... entro sempre pela garagem... abre com comando, não precisa de chave!)
    ;)))))))))

    ResponderEliminar
  12. o que me choca mais é ver os jovens a terem o mesmo comportamento que repudiavam dos pais, Rosa.

    é um circulo vicioso, que provavelmente só tem emenda com penas pesadas para os agressores.

    abraço

    ResponderEliminar
  13. Uma realidade que muito me choca, preocupa-me ver nos jovens atitudes de falta de respeito para com as namoradas e elas ficarem submissas...
    Bom texto
    Beijinhos

    ResponderEliminar
  14. Estou como o Luis e a Lilá(s), vejo um retrocesso, os jovens de hoje estão a ficar ainda piores e o que me deixa ainda mais estupefacta é elas deixarem.

    Bjos

    ResponderEliminar
  15. É um dos problemas nacionais que mais me perturba: como é possível, ainda, haver estes crimes E NADA SER FEITO PARA OS EVITAR!!!
    Nada é demais para esclarecer, divulgar, denunciar, mudar mentalidades, exigir justiça!!

    ResponderEliminar
  16. Rosa,
    Tendo em conta certas realidades amordaçadas, este post é sublime. E Mia Couto, de quem sou fã, é companhia mais do que recomendável.

    Beijo :)

    ResponderEliminar
  17. Um flagelo, que teria a mesma adjectivação se o número de vítimas se reduzisse a uma. É uma realidade que importa permanentemente lembrar, denunciar e punir. Sem 'desculpar as culpas'.

    (Adoro Mia Couto e já li quase tudo dele. E ele escreve, como poucos, sobre quase tudo. É uma escolha magnífica!).

    ResponderEliminar
  18. Neste livro de contos, em quase todos surge uma problemática desenvolvida daquela maneira criativa e cativante tão ao jeito de Mia Couto!
    Só não apresento outra temática interessante para não cansar os meus simpáticos visitantes... :-))

    ResponderEliminar
  19. Há que variar, Catarina!
    O "mercado" não perdoa... :-))
    O que vai por aqui de bloggues interessantes...
    Mas logo volto ao "Fio das Missangas"!

    Abraço

    ResponderEliminar
  20. Belíssimo texto para relembrar uma vez mais, - nunca é demais - esta espinha da nossa sociedade.

    ResponderEliminar
  21. Triste e terrível o que está a suceder.

    ResponderEliminar