Ninguém se esquecia das palavras sábias de Ernesto, ditas ao receber mais um saco de generosidade, com pares de sapatos e peças de vestuário: "Pé de pobre não tem número."
Sempre fora o que a avó Casemira lhe ensinara. E a velha senhora ainda acrescentava: " E pobre não troca de roupa, a roupa é que troca de pobre. Vai primeiro para o irmão pobre, depois para o primo pobre, depois para o neto pobre, e assim por diante, até a pobre da roupa já não perceber se nasceu camisola ou cachecol."
Apesar da tenra idade, o gaiato era doutorado na matéria: nascera sem nada e crescera ainda sem menos. Por isso, não temia assaltos, incêndios nem tremores de terra. A vida para ele pouco valia. Com apenas nove anos de idade, já vira desaparecer os bens mais preciosos: a avó, a madrinha e os irmãos que se foram espalhando pelo mundo da desgraça, herdando os passos errantes dos pais.
Ernesto apreciava a liberdade do desapego e nada lhe faltava na capital do país "Vale-tudo-menos-tirar-olhos". Estranhamente, e da noite para o dia, a maioria dos habitantes começara a acreditar nas convicções da mais jovem curandeira daquele lugar: " Quem ajuda recebe troco e, às vezes, a dobrar. Até já vi alguns jackpots."
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Embora o nome do país fosse um aviso, a capital parecia uma terra pacata, mas à noite, nas ruas desertas, o garoto já assistira a verdadeiros filmes de terror, de suspense e mesmo pornográficos, sem nunca pagar bilhete.
"Boa noite, está na hora de ir para o Baú" era assim que Ernesto Naftalina, sua alcunha por gostar tanto de roupa, se referia ao rés-do-chão abandonado, onde dormia num velho colchão, rodeado de mais peças de vestuário do que as existentes na boutique da dona Estrelinha. ....................................................................................................................................................................
Sozinho e confortável no seu Baú, Naftalina passava os serões a cortar fotografias de pessoas com nomes sonantes e a desenhar-lhes por cima fatos, vestidos e chapéus que nunca lhe passaram pela cabeça. nesses momentos sentia-se milionário. Para ele, pobreza era não ter imaginação: não sendo para comer, beber, vestir ou transportar, as ideias tornaram-se, na vida de Ernesto, a tampa da panela de muitos apuros.
"Quando for grande, vou vestir senhores Presidentes, Ministros e Primeiras Damas. Como pode um país sentir-se feliz se os políticos só usam fatos cinzento ratazana, azul noite sem lua ou beje de gente morta?" - comentava Naftalina com o senhor Arlindo, dono do café do largo, enquanto partilhavam as notícias do telejornal, à hora do almoço. O proprietário sorridente pensava: " Sonhar é bom e não custa dinheiro."
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Isabel Zambujal, in "Do Conserto do Mundo" ( Contos)
Nota: este é um extracto de um conto retirado do livro referido, livro esse elaborado em parceria por vários autores, desde os mais consagrados aos iniciados, no âmbito do Ano Europeu do Combate à Pobreza e à Exclusão Social.
Cada conto reflecte um olhar sobre a temática em questão, de acordo com a sensibilidade do seu autor.
Patti, minha simpática visitante, de "Ares da Minha Graça" é uma das contistas.
POBREZA É FICAR INDIFERENTE!
É uma edição da Imprensa Nacional Casa da Moeda.