No dia em que fiz 10 anos, o meu padrinho, irmão do meu pai, decidiu presentear-me com uma ida ao cinema.
Nessa altura, a terra onde nasci, embora fosse uma aldeia, fervilhava de gente devido à sua florescente indústria têxtil e tinha um excelente cine-teatro onde todos os domingos passava um filme.
A idade do público mais jovem era controlada, à entrada, por dois soldados da GNR mas esse controlo abrandava com filmes de aventuras e quando íamos com adultos.
Então, como estava dizendo, fui presenteada com uma ida ao cinema na companhia do meu padrinho, ainda solteiro, que decidiu levar também a minha avó.
Caseira como era, dada a poucas saídas, sempre numa roda viva com a casa cheia de filhos, teve nove, e de netos, não tinha a mínima vontade de ir, com toda a certeza, mas aquele era um filho muito especial que até lhe dedicava poemas, daí não ter conseguido furtar-se ao convite.
E lá se sentou entre a neta e o filho para vermos juntos "As Minas do Rei Salomão", um filme de 1950 mas tudo o que lá chegasse com pouco menos de dez anos de atraso era absolutamente actual.
Às tantas, apercebo-me que a minha avó estava a bichanar e tendo ela uma boa escolaridade, leria as legendas apenas com o olhar.
Foi então que reparei que, no colo, numa dobra da saia, tinha um terço e estava simplesmente a rezar.
Dei um toque ao meu padrinho, por detrás do ombro da avó, de forma a que visse o que se estava a passar.
Ele sorriu, eu sorri e a avó lá continuou a rezar.
Nunca mais me esqueci deste filme nem deste episódio da minha infância e se o lembro agora aqui, nesta data, foi por ter ouvido logo de manhã, na rádio, que no dia 28 de dezembro de 1895, no Grand Café no Boulevard des Capucines, em Paris, os irmãos Lumiére fizeram a verdadeira divulgação do cinematógrafo com entradas pagas, passando " La Sortie de l´usine Lumière à Lyon".
Claro que nem eu nem o meu padrinho fizemos qualquer reparo à nossa orante companheira!