"Mas nos sítios onde antigamente pairavam corolas de nuvens sobre as montanhas mais altas, eram ainda as montanhas - altíssimas, perpétuas e torcidas como cães de pedra sentados na água. E onde outrora existira o vento, e o mar fora oblíquo, e os barcos passavam de quilha inclinada, cheios de gente feliz com lágrimas em direcção à América - existiam ainda os carros de vento, os barcos e bandos de gaivotas muito brancas planando em redor dos mastros. Carregadas de chuva, as mesmas nuvens que há vinte e cinco anos atrás rolavam de norte para sul, à procura de outros mares para onde as levassem os imponderáveis destinos do vento. E como nunca passavam além das montanhas, haviam optado, em definitivo, por permanecer naquele céu sem altura. Confundiam-se mesmo com os deuses que dormem e respiram e estão sempre em levitação."
Este é um pequeno extracto do livro de João de Melo, "Gente Feliz com Lágrimas", e cujo título se vai encontrando em várias frases ao longo da narrativa.
Como tenho por hábito assinalar numa das primeiras folhas de cada livro a data do início da sua leitura e no final a data da sua conclusão, sei que o iniciei em Abril de 1989.
É um romance a várias vozes, vozes essas que narram a saga de uma família açoriana que se dispersa, se desencontra num estranho amor-desamor, pelo Canadá, Lisboa, Luanda e que decorre desde o início dos anos 60 até 1988, com todos os acontecimentos político-sociais dessa época como pano de fundo e que termina com dois finais:
1. O retorno à terra dos nevoeiros por parte do narrador principal, Nuno, herdeiro da casa da família
2. E uma reflexão profunda desse mesmo narrador sobre o maior dos seus erros: pensar que podia viver na primeira pessoa e ao mesmo tempo ter sido outros, Nuno e Rui Zinho ( seu pseudónimo como escritor), o feminino plural das suas cinco irmãs e também o género e o número dos seus três irmãos. Todos na verdade persistem como o caleidoscópio de um único rosto.
Apesar de andanças, mudanças, encaixotamento de livros durante anos, a este, por estranho que pareça, nunca lhe perdi o rasto.
De vez em quando, procurando um outro, lá me surgia ele com o marcador na página certa, pegava-lhe, lia umas páginas normalmente coincidentes com uma das "vozes narradoras" e abandonava-o de novo.
E ele sempre por perto, à minha espera...
Até que ontem, passados 21 anos e 2 meses escrevi na sua última página - Concluído a 25 de Junho de 2010.
Dirão, os caríssimos visitantes que tiveram a paciência de chegar até aqui, que se levei tanto tempo a lê-lo é porque não o achava interessante, mas não foi essa a situação vivida.
Aconteceu simplesmente que, tanto ele como eu, ficámos "pendurados" um no outro numa espécie de namoro cheio de "pega" e "larga".
Convosco já aconteceu algo de semelhante?